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segunda-feira, 14 de outubro de 2024

Oh besta tinada!

 


 

Numa dessas tardes, saiu esbaforida como quem tivesse se esquecido do compromisso firmado há semanas:

A consulta médica,
O retorno ao dentista,
O café com a amiga, sumida desde que casou.

A verdade é que não tinha marcado obrigação nenhuma com outrem.
Sua ânsia era do encontro com a rua, com os sons dos carros e motos, com os grunhidos inexplicáveis e indescritíveis da cidade. Ela queria o cheiro dos churros da esquina e se esbaldar nas cores daquele lugar, lambendo os beiços de satisfação. 
 
Ela tinha a pressa de quem não quer perder o ônibus.
Caminhava com as ganas de quem vai encontrar o novo amor. 
 
A fúria dela era tida como grosseira por alguns.  
Os vizinhos notavam a impaciência no apertar do elevador e no sapateado pelos corredores. Ela fingia gentileza, mas nem fazia questão de educação ou diplomacia. Estava atrasada demais. 
 
Notou, inclusive, que firmava o maxilar com força.
Lembrou das recomendações da dentista, da terapeuta.
 
Ela saiu tão atordoada que nem percebeu a falta de documento e dinheiro. 
Sentiu foi o vento metendo-lhe as fuças, desgrenhando os cabelos já nem tão fartos assim. E riu, meio besta. 
 
Sem ter destino algum, cortou por uma esquina e foi reparando nas árvores, nos cachorros e no dono da banca varrendo a calçada.
Ela tinha uma pressa tamanha que nem leu as manchetes ou percebeu que agora vendiam açaí e cerveja na banca de jornais. Se tivesse notado entenderia que fazia mesmo sentido a diversificação do portfólio. Quem ainda lê no papel? 
 
O sinal logo abrira e que bom, pois nada tinha de paciente para esperar as luzes mudarem. Foi tão ligeira que o motoqueiro buzinou agressivo, como se a culpa fosse dela, e não dele. O caminho estava livre pra ela.
 
E foi seguindo no rumo certo de quem não fazia ideia de onde ia. Os passos firmes denunciariam a qualquer um que estava atrasada, apressada pra chegar.
Quando se deu conta já estava bem longe de casa e mais perto de si. 
 
Sorriu. Dobrou a esquina como quem passara a tarde toda num parque num domingo qualquer.
Era segunda, mas aquele dia era dela, primeiro.

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