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quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Propriedade

A agitação do seu sangue ao toque das minhas mãos me coloca em um estágio de excitação, como se me impedissem de andar descalça ou de recortar sistematicamente todas as propagandas de climatizadores de ar. Não há incômodo em dizer que a sensação não é de amor, nem de afeto. Apenas o egoísmo clássico que você anuncia em todas as discussões que por hora tivemos. Mas essa excitação focaliza todos os quatro sentidos num único propósito de te aprisionar. É aí que ensaio todo o planejamento para montar uma cela personalizada para o seu tamanho, em composição de vidro e com um sistema de vedação biométrico. As alterações que o toque em você me causam não são puramente orgânicas, causam um mal físico e individualizado. Não estou convencida se essa excitação provoca um comportamento venenoso ou, se é apenas uma alteração de humor passageira. Se pelo menos o seu gosto não me entorpecesse, eu poderia simplesmente abandonar a minha fixação por climatizadores de ar e desistir do sistema in vitro. A parte positiva do procedimento é que nenhum ser estranho poderia invadir seu corpo, afinal, apenas o meu toque romperia o sistema de vigilância. Porém, nem assim eu me daria por satisfeita. Reforço, a sensação não é de afeto, mas puramente de um prazer peculiar que só é aflorado com a observação da sua respiração seca, do seu olhar mudo e de sua rebeldia. Eu não oculto essa vontade primitiva de te consagrar como minha exclusividade. Queria mesmo era cravar meu nome em cima da sua alma e tornar legítimo dizer que você é sim propriedade minha. 

5 comentários:

  1. Eu não sei tudo o que gosto no seu jeito de escrever, mas uma das coisas é bem clara pra mim. Gosto (muito) da sua falta de pudor em se mostrar (obviamente falo do eu lírico, não de você propriamente) inteira, sem sentir uma necessidade de florear as coisas, amenizar, aparentar melhor, mais bonitinha, mais certinha. Sentimos coisas das quais não nos orgulhamos. Na verdade, até me orgulho, sabe? A minha humanidade está exatamente aí, na minha fraqueza, na minha sordidez e nas minhas virtudes também. Se eu não fosse tudo isso junto, não seria eu, não seria humana. Poderia ser uma dessas deusas inventadas. Não gosto muito da ideia de deuses (com letra minúscula). Enfim, pra que tentar explicar, não? O fato é que gosto (muito) das coisas que leio por aqui. Por aqui me vejo, me reconheço, consigo entender o seu processo de raciocínio. Não fico com aquela pergunta no ar: Sim, e daí? rs

    Bjs.

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  2. Gostei também. Gostei muito. Esse texto tem um quê de feminismo. Não, feminismo não. Machismo ao contrário.

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  3. Outro dia estava lendo algumas citações e me deparei com essa (que particularmente achei maganífica): "escreve, se puderes, coisas que sejam tão improváveis como um sonho, tão absurdas como a lua-de-mel de um gafanhoto e tão verdadeiras como o simples coração de uma criança". O que quero dizer ao transcrever as palvras de Hemingway é que esse texto, ao meu ver, é tão improvável e verdadeiro quanto devem ser a boas leituras - aliás encontro muito disso aqui -, e que me levou a pensar que com os desejos muitas vezes vem o desejo de posse e como todo sentimento jamis devem ser retraídos.

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  4. Curto e sincero: de ler, e reler, do princípio ao fim. Um deleite!

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