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terça-feira, 31 de agosto de 2010

Na calçada pela manhã

Se eu sair cedo ainda encontro com eles. Cedo assim, 5h50. Basta passar um quarteirão e lá estão eles brilhando no canto sujo da calçada. O par, obviamente simétrico, não demanda trabalho a dona, pois o verniz os deixa com aquela carinha de novinhos em folha. Fico imaginando quanto pode durar o efeito. Afinal, todos os dias a dona está no ponto a espera do coletivo que vai saculejar até o trabalho. Eles parecem treinados para não perder o compasso. A dona ensaia ainda na calçada o tique-taque-tum num saculejo impaciente de quem aguarda uma jornada longa. De passo, em passo eles vão perdendo um pouco da salsa e se deixam levar pelo batuque. Acho que a cara da dona eu nunca vi. Só a deles mesmo. Talvez pelo brilho ou pela melodia que ecoam nas minhas manhãs. Eles me deixam mesmo encabulada, como pode sapatos assim tão pretinhos, tão limpinhos, ficar nessa alegria enquanto espera o ônibus? Pode até ser que com amor se explique. Sei lá, vai que tem um parzinho arrumado no assento ao lado da dona. Já pensou? Um compasso a quatro num coletivo lotado e ninguém dando bola pros pisantes enamorados. Nada, isso é conversa fiada. Eles devem se empolgar só por sair da caixa escura, sair do quarto se arrastando em plena madrugada fria e descer apressados pelas escadas do prédio da dona, contornar a esquina e correr para o ponto. Ah, a calçada. Essa é outra que deve esperar por eles e pela dignidade que trazem a ela, quando se acomdam em seu peitoril. O balanço deles contagia, apesar de irritar o moço enfezado com o cigarro do outro lado. De certo esse daí não gosta de madrugar ou tem pressa de chegar a algum lugar. Eu não, quando passo fico esperando o brilho deles iluminar a minha retina e o batuque animar o meu dia. Mas só dá certo nos dias em que saio cedo.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Pra lá dos ventos de agosto



Pode ainda faltar um mês para a primavera, mas já sinto o frescor das flores se aproximando. As cores mais vivas nas ruas, o perfume inebriante em todos os cantos e esquinas. Pode tudo não ser tão mágico como se anuncia nas propagandas e nas coleções de primavera-verão, mas pelo menos todos estão se esforçando para deixar as vitrines mais belas, mais vivas. É um pouco disso que a gente precisa quando tudo vai ficando cinza demais. Morno demais. Estático e errático como uma estátua de pedra-sabão numa cidadezinha do interior. As pessoas passam, olham e depois de um tempo já nem a notam mais. Vez ou outra alguém se lembra dela para dar uma referência, passar o endereço certo. É como aquela pessoa que você identifica por alguma característica, pois de tão apagada você nem se deu ao trabalho de decorar o nome. "Aquela do cabelo cacheadinho", "uma gordinha que senta naquele computador da esquerda", "o que vem sempre de boné azul". Qualidades poderiam ser destacadas em cores. Amarelo para a vivacidade, para aqueles que te recebem com um sorriso aberto, franco. Azul para quem tem a habilidade incontestável de nos relaxar, aconselhar. Fica o vermelho, o preto e o roxo para aqueles que querem tudo do bom e do melhor, aqueles que idolatram o luxo, que amam o poder. Não que sejam cores ruins ou maquiavélicas, apenas características que alguns têm em maior evidência. E quando a primavera vai chegando a gente encontra de tudo um pouco nas ruas. Uma mistura que chega a ser brega, mas que convence nas revistas. 
Da primavera eu quero mesmo só a liberdade para ser feliz. Quero poder apontar mil cores em mim e ter orgulho disso. Cansei de sentir o amargo de agosto, embora eu nunca tivesse o experimentado com tanta voracidade. Não quero mais essa temporada de ventos que atrapalham o cabelo e os destinos. Que muda tudo de rota, que faz as folhas caírem antes da hora e que despertam a tempestade em nós. 


PS. Foto de Ana Clara Otoni.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Sobre a inércia alheia


Você ignorou a ligação, a mensagem e todos os meus pensamentos. Fato.
Provavelmente, quis reprimir toda a vontade que tentava corromper o "bom-moço" e, assim, evitar o perigo. Ou seria a verdade?
Não sei se você foi covarde ou se eu fui quem arriscou demais. Você deve nem achar, mas eu tenho muito a perder. Certas coisas a gente demorar pra conquistar, não são como aquele sorriso que você arranca dos meus lábios apenas com a sua chegada. Eu tô falando de coisas que você não compreende, não viu. Não tem. 
É por isso que deve pensar que estou correndo riscos por aí. Pegando escalas malucas, fazendo horários bizarros e desenhando seu rosto em outros lugares. Saiba que se estou, não deveria. As minhas aventuras são calculadas, ensaiadas até, eu diria. E, não, eu não acho que isso faça com que elas percam o frescor da surpresa. Mas, saiba que quando são frustradas, contabilizo meus sofrimentos, minhas angústias e cada risco em vão. Vou marcando tudo num caderninho, um dia mando a conta.